segunda-feira, 22 de agosto de 2011


Querebentã de Zomadonu é como é designada a Casa das Minas por aqueles que a instalaram ainda no século XIX. Segundo alguns, a comunidade religiosa mina jeje do Maranhão foi organizada por africanos procedentes do Daomé, atual República do Benim. Para Pierre Verger (1902-1996), o culto foi trazido para o Maranhão pela Rainha Nã Angotimé, que fora vendida como escrava juntamente com outros membros da família real no final do século XIX e princípios do século XX.

Para membros da própria Casa, como Mãe Andresa, em depoimento concedido ainda na década de 1940, o lugar simplesmente teria sido fundado por pessoas que vieram diretamente da África.

Todavia, todo esse patrimônio – tombado pelo Iphan como patrimônio imaterial em 2002 – que fora imortalizado nas páginas de "Os tambores de São Luís", célebre romance do escritor maranhense Josué Montello (1917-2006), corre o risco de desaparecer.

O barco, ou feitoria, ritual de iniciação que prepara novos membros para a Casa, não é realizado pelo menos desde 1913.

Com o barco são preparadas as vodúnsis gonjaís, religiosas que, ao se submeterem ao ritual completo, recebem o seu vodum e uma entidade feminina infantil, a tobossi. Somente depois de receberem esse ritual é que se está apto para preparar novas gonjaís. O tambor de Mina, que integra todo o cerimonial na Casa, pode, talvez, se silenciar para sempre.

Estudiosos e membros da Casa apontam vários motivos para explicar a não ocorrência do ritual.

O antropólogo da Universidade Federal do Maranhão Sérgio Ferreti, estudioso da Casa das Minas há quase 30 anos e que já dedicou vários livros e artigos sobre o assunto, lamenta que tudo isso esteja acontecendo.

Em seu livro, “Repensando o Sincretismo: estudo sobre a Casa das Minas” (São Paulo: USP; São Luís: Fapema, 1995), Ferreti teceu várias argumentações a esse respeito. Primeiramente que a religião, assim como a própria Casa, é bastante fechada – estruturada em relações de parentesco e de organização matriarcal, comandada basicamente por mulheres.

Suas manifestações religiosas sempre foram cercadas por grande segredo. Muitos membros da Casa evitam pronunciar o nome das divindades – às vezes, substituídos por apelidos – ou comunicam-se em língua jeje para não serem compreendidos pelas pessoas mais novas. O mistério com que certos assuntos foram tratados contribuiu para perda de muitos rituais e conhecimentos tradicionais.

Estudiosos como Peter Fry e Reginaldo Prandi, entre outros, argumentam que estaria acontecendo um “suicídio cultural”.

Os membros da Casa também apresentam os seus motivos para não realizarem mais o ritual. Dizem que não houve mais pedido dos voduns para realização do barco. Comentam ainda que no passado foram cometidos vários erros nos rituais de iniciação.

Fatores de ordem econômica e social também são considerados. Em meados dos anos 50, várias fábricas de tecido fecharam suas portas na região e com isso diversos membros acabaram mudando de lugar em busca de melhores oportunidades.

Fala-se ainda em orgulho das pessoas mais velhas que não quiseram transmitir os ensinamentos às mais jovens. A falta de recursos para custear os cerimoniais também é outro problema apontado. Alega-se ainda que muitos não tem mais o compromisso de aceitar as condições que a religião exige, pois segundo os integrantes da Casa, para receber o barco tem que ser pessoas muitos especiais, que tenham responsabilidade e compromisso com os ensinamentos.

O fechamento da Casa divide opinião até mesmo entre os próprios membros. Enquanto algumas vodunsis esperam que continue o seu funcionamento, outras dizem que se for para transmitir para uma pessoa qualquer, é preferível ver a Casa fechada.

Algumas questões étics vivenciadas no contexto das religiões de matriz africanas da Amazônia.

    Assim como as doutrinas religiosas tradicionais (judaicas, cristãs, islâmicas), as religiões de matriz africanas da Amazônia se estruturam em torno de um conjunto de normas, o qual é transmitido por meio da oralidade e deve ser resguardado por seus adeptos; mas também há de se considerar que cada casa de santo se fundamenta a partir de suas próprias normas, podendo, com isso, acatar, reelaborar ou negar àquelas que são mais comuns nos Terreiros. Todavia quero destacar aqui as prescrições que geralmente estão presentes quer seja na Mina, quer seja no Candomblé de Angola.

Enquanto filho-de-santo, tenho observado certos preceitos na constituição dos rituais da Mina. Nos três dias de carnaval e durante Semana Santa, é proibido tocar tambor, ou melhor, não se podem fazer festejos públicos nos terreiros de Mina, porque, como diria Anaíza Vergolino, para muitos terreiros de Belém, especialmente os de Mina-Nagô, a sequência de tempo Carnaval/Quaresma representa a passagem de um chamado “período de euforia” (Tempo do Carnaval) para um “período de meditação” (Tempo da Semana Santa). Esse período de ruptura é marcado por muitas interdições rituais, algumas das quais recaem principalmente sobre o calendário. (HENRY, 1987, p. 60).

E, ainda tratando das proibições litúrgicas da Mina-Nagô no tempo da Semana Santa, eu notei a quebra de um tabu alimentar durante na Quinta-feira Santa, conhecida pelos católicos, como Quinta-feira Santa de lava-pés. Nos cultos de Mina é severamente proibido comer caranguejo, porque, segundo a lenda yorubana, o orixá Obaluaiê (semi-deus africano que representa a força da terra e do sol) teria sido devorado por um caranguejo que quase mata o orixá.

Mas na quinta-feira santa, a maioria dos terreiros de Mina oferece um almoço farto aos filhos e pais de santo: é servida uma feijoada de feijão preto, acompanhada por caranguejos cozidos. Todo que estão ali deve comer caranguejo a vontade, mas com o sentimento de raiva, aplicando muita surra do animal cozido, batendo nele com força. Isso é feito porque nesse dia, em especial, o ato de comer o caranguejo representa que se está enfrentando a morte, arriscando a própria vida, já que ele é um animal que anda para trás e que quase mata um dos maiores orixás da religião africana, o Senhor Omolú. Então, comer caranguejo na quinta santa é uma educação da morte, com a morte e para a morte. (IDEM, p. 63-64). Passado esse período, o tabu do caranguejo para os “mineiros” é restabelecido e mantido até a chegada da quinta-feira santa do ano seguinte.

Outro preceito pertinente não só na Mina, mas também nas casas de Candomblé, é que não se podem manter relações sexuais e nem contato com o mundo externo (fora da casa de santo) durante os chamados períodos de recolhimento. Esses períodos de confinamento do médium na casa de santo correspondem ao preparo do indivíduo para execução de atividades religiosas diversas. Por exemplo, uma pessoa que quer ser filho/a de santo na Mina, fica recolhida durante três dias para “fazer o santo”, ou seja, o pai-de-santo irá assentar a entidade espiritual do aspirante, ensinar os fundamentos básicos do terreiro e começar desenvolvê-lo para o recebimento dos encantados, que foram pessoas que viveram na terra, mas não passaram pela experiência da morte e foram, assim, levados para o mundo da encantaria.

No candomblé de Angola também tive experiências com novos preceitos, os quais se diferenciavam com aqueles aprendidos no contexto da Mina-Nagô. Seja em qualquer circunstância (ritualística ou não), o filho-de-santo sob hipótese alguma poderá sentar em cadeira ou lugares altos que marquem uma posição elevada ou similar ao assento do pai-de-santo. O pai-de-santo é figura máxima do ritual de Candomblé e as práticas dos filhos-de-santo devem voltar-se como um ato de submissão e respeito ao sacerdote da Casa. Geralmente, eu chegava ao terreiro de meu pai e procurava logo uma poti (um banquinho de 30 a 40 centímetros) ou uma esteira para me assentar, mostrando, com isso, obediência aos preceitos da casa.

Também no candomblé existem tabus alimentares que são seguidos a risca. Eu, por exemplo, como filho de Oxalá velho não devo comer comidas com sal, dendê, pimenta. Tudo isso tem uma fundamentação lendária. Contam que Oxalá viajou até o Reino do Oyó, para visitar seu filho, o Rei Xangô. Durante a peregrinação do velho Oxalá, o seu irmão invejoso, o orixá Exú, perseguiu o Senhor do Pano Branco, tentando fazer com que ele não alcançasse o seu objetivo. Exú por três vezes tentou e enganou Oxalá. Exú se passava por mendigo e pedia ajuda para o velho ajudá-lo a carregar o fardo que trazia nas costas. Quando Oxalá se abaixava para juntar o saco exu jogava algo para macular e zombar do Orixá-maior. Oxalá deixou-se enganar por três vezes e Exú sujou as roupas do seu irmão com um desses elementos pro vez: sal, dendê e carvão. Quanto à proibição da pimenta, ela é estabelecida porque é um alimento de Exú, o que representa uma afronta aos filhos de Oxalá. As roupas vermelhas e pretas também são coisas a serem evitadas pelos que trazem esse orixá, pois são cores propriamente de Exú. Se formos observar cada fundamento dos orixás do panteão africano, veremos que cada um traz um bojo de prescrições a serem seguidos pelos seus respectivos filhos-de-santo, para que se mantenha respeito à entidade sagrada que rege a vida de cada um e para que cada um não venha a desenvolver problemas no plano físico e/ou espiritual ao burlar um interdito ligado ao arquétipo do seu orixá.

Tratando ainda sobre a alimentação em relação com o sagrado nos cultos afro-brasileiros, observei a obrigatoriedade de imolar certos animais, que são práticas sacrificais que me remetem ao Ensaio sobre a dádiva, de Marcel Mauss. Nas obrigações ritualísticas do candomblé geralmente se abate certos tipos de animais para um orixá. Meu caso, por exemplo, se eu for raspar para o meu orixá, deverei ficar enclausurado por 21 diais no Inzó (casa de santo), fazer um ebó (espécie de limpeza), arriar comidas do meu orixá, e, principalmente, imolar animais de cor branca como oferenda ao santo que rege a minha cabeça. Mas, em outras circunstâncias, como pedido de uma graça, restabelecimento de saúde etc, pode-se recorrer ao orixá pedindo-lhe o que se deseja, mas para isso deve ser estabelecida uma troca entre o profano e o sagrado e para mostrar a minha aliança com a divindade que me assiste. Pois, como diria Marcel Mauss, “recusar-se a dar, deixar de convidar ou recusar-se a receber equivale a declarar guerra, é recusar a aliança e a comunhão” (MAUSS, 1974).

Retomando a relação filho e pai-de-santo, quero destacar algumas que considero importante, vigente na própria estrutura do ritual de Angola. Durante as festas de orixás, o ritual inicia a partir de cânticos em Bantu, os quais exaltam e chamam os orixás para incorporação nos filhos e pais-de-santo. De acordo com sistema ritual nunca se canta do maior para o menor orixá, a ordem crescente do panteão africano é entoada na cerimônia, ou seja, primeiro se saúda o Exú, depois Ogum, Oxóssi, os outros orixás masculinos e femininos, até chegar a reverência a Oxalá, que tido como o “Pai-Maior” e o mais importantes de todos. Assim como na liturgia dos cânticos, observa-se a mesma estrutura de ordem crescente nas ações litúrgicas dos que dançam no salão. Primeiro, entram de cabeça abaixada e com o corpo encurvado os filhos-de-santo, depois os pais e mãe-de-santo, sendo que dentre estes o último que entra é o dono (ou a dona) da Casa.

Interessantemente que durante meu vivenciamento no Candomblé, observei que os valores da sociedade fora dos limites do terreiro não têm importância alguma para os valores e para a estruturação dos terreiros de Angola. Ou seja, quero dizer que eu entrei no candomblé com uma formação diferente do meu Pai-de-santo; aquela altura eu estava quase me graduando na Universidade e meu pai devia ter no mínimo concluído um ensino médio e isso, sob hipótese alguma me deu privilégios de gozar um status dentro candomblé, muito pelo contrário, ficou bem estabelecida a minha posição de iniciado e que eu deveria me comportar como tal, numa atitude de submissão e respeito aquele que tinha um outro conhecimento religioso que eu não tinha e esse conhecimento e mais os anos de iniciação do meu Pai de santo que faziam toda a diferença nas relações internas da nossa casa de santo. Dizia meu Pai-de-santo que a pessoa poderia até ser doutora, ter muito poder aquisitivo, ser famosa, mas que nada disso importaria para nossa religião e que ela deveria sentar na poti, na esteira e obedecer as normas do terreiro se quisesse fazer o santo.


Bibliografia

HENRY, Anaíza Vergolino. A Semana Santa nos Terreiros: um estudo do sincretismo religioso em Belém do Pará. In: Revista “Religião e Sociedade”, 14/3, 1987.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva. São Paulo: EPU, 1974.

Nota:
* O presente texto é uma separata do artigo “De católico a candomblecista: relatos experienciais de um religioso”, o qual foi apresentado sob forma de palestra aos graduandos de Ciências da Religião – PAFOR/UEPA, no dia 14/07/2011, ministrada pelo Professor Marcel Franco da Silva.

Por Marcel Franco da Silva
Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião
Universidade do Estado do Pará
E-mail: marcelpa@hotmail.com

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